Crônicas da Caverna

Crônicas da Caverna

  • Entretempo

    setembro 18th, 2025

    Gota primeira,
    Ruído quebrado.
    Felicidade estranha.


    Só observar,
    Até o último cair.
    Olhei o céu, ela olhou.
    Gota, me provoca. Sorri.


    Chuva encontra-me.
    Alma lavada, leve.
    Livre da dor, do erro.
    Espero o dia dela.


    Contava nuvens.
    Demora, mas volta.
    Sempre a surpresa.
    Trovão, ela não gosta
    Do meu pouco valor.


    Quis me surpreender.
    No quarto, sem fé, espelho.
    Vi-a: fina, triste.
    Afastamento. Distância.
    Não nos encontramos.


    Tentei ser chuva.
    Lágrimas não alcançam.
    Sua falta dói.
    Céu pesado anuncia.
    Aguardei. Coração apertado.


    Ela chegou.
    Forma angelical, humana.
    Só observei, admirado.
    Você é humana agora.


    Toque familiar.
    Nas noites mudas, sabia.
    Seu abraço, purifica.
    Beijo: paz. Perdão breve.
    Paraíso, ao seu lado

  • O Homem Mutilado

    setembro 7th, 2025

    O quarto afunda antes do chão. 

    papelão molhado, a tinta escorre 

    um rio sem margem onde os passos não chegam. 

    o chão recua, feito promessa quebrada. 

    eu não entendo o que segura o teto. 

    a água sobe lenta, sem pressa de afogar, 

    apenas cobrir o que restou do sentido. 

    Bolhas mudas. O ar, uma espessura

    que não empurra, só contorna.

    Vácuo. Mãos se lavam no que não existe,

    um gesto antigo, inútil. Limpo de nada.

    o que se espera quando o eco se cala?

    Ele é feito de retalhos, costuras recentes 

    que sangram. Fios tensos, memória viva 

    da lâmina que separou a carne, o destino. 

    O fio entra chiando. A pele recua tarde. 

    O osso estala duas vezes. 

    Teseu sem labirinto, ele próprio o monstro 

    que aguarda na esquina do próprio corpo, 

    o mapa do que já foi, agora um emaranhado. 

    Um nó. Só. 

    Um ponto de pó. Que se assenta. 

    O rio de antimatéria empurra sem tocar. 

    Uma força que anula, sem toque físico, 

    sem cheiro, sem aviso. Só o vácuo gelado. 

    Frio seco que queima. Vento nenhum eriçando pelos. 

    Eu vejo os pelos imóveis, a pele arrepiada 

    por um nada gelado. Uma porra de vazio que dói. 

    Uma pressão que dobra os joelhos. 

    A areia da praia, um castelo erguido na pressa. 

    Balde e pá, ferramentas de criança 

    para um adulto em escombros de silêncio. 

    Marca de dedo na muralha. Um brasão torto. 

    A pá encostada. E o mar? 

    Não há mar. Só o barulho da ausência, 

    o silvo branco da espuma que não vem. 

    Mofo na alma, um cheiro que não sai, 

    impregnando cada fibra, cada ideia. 

    Anedonia, o apagão educado. 

    Sem luz, sem grito, sem raiva sequer. 

    Só o silêncio que se adapta, que não faz ondas, 

    que não denuncia o que apodrece por dentro. 

    Um muro sem cor. Uma tela branca demais. 

    Mas a palavra. Ah, a palavra é a tábua. 

    Mesmo que podre, mesmo que fina, 

    ela flutua. O último respiro contra o afogamento. 

    Eu escrevo até que o vidro responda com bafo. 

    Um sopro contra a frieza. Um sinal de que, merda, 

    ainda há algo aqui. Um resquício teimoso. 

    Um rasgo. Um laço. Tentando laçar o ar. 

    Mar, amar, amargar. Tudo vira pó. 

    Mas o escrever… é um músculo que insiste. 

    O ritmo serrilhado da vida. 

    Cortes bruscos, pausas súbitas. 

    A respiração engasgada, um arranhar na garganta. 

    O pulso falha, depois acelera 

    sem razão. Sem lógica. 

    Só o corpo, obedecendo a algo 

    maior que ele, maior que eu. 

    Que ele. 

    A palavra não salva como barco, mas sustenta como boia. 

    Eu respiro, devagar, devagarinho, vivo. 

  • Manifesto da Curvatura

    agosto 31st, 2025

    (última noite de agosto, depois do universo)


    I

    Chamam de memória, eu chamo de gravidade.
    Quando dois corpos se tocam, o espaço aprende.
    Aconteceu conosco: passamos um pelo outro
    e o tecido do mundo ficou amassado,
    um vinco no tempo onde volto o dedo
    e ainda sinto o morno do impacto.


    II

    Você chegou com aquela luz neon.
    Mas não é o neon do catálogo, o azul-constelação
    que treme na borda da íris e diz vem cá.
    Eu chamei de paraíso e não me arrependo da palavra,
    apesar do riso solitário e amargo que cultivo hoje.
    O paraíso era um calor no osso,
    era a caverna perdendo teto,
    era a chama que invade.
    Sim, forcei no Platão — não resisto a um toque de drama
    sim, flertei com Nietzsche igual se eu tivesse encostado meu rosto
    no corrimão do abismo para medir a altura.
    E então tirei print existencial do abismo respondendo com educação:
    seu olhar me olhou de volta.


    III

    Depois vieram os turnos de maré.
    O campo de batalha feito de silêncio,
    o uniforme, uma provocativa lembranças de paciência.
    Eu, encastelado na pseudológica;
    você, farol insistente na neblina.
    E aí os mapas não batiam,
    a entropia fez o serviço:
    o universo ruiu na cadência suficientemente correta,
    uma escada que desce sem corrimão — toma cuidado!
    Eu quis chamar isso de destino, eu chamei (surpresa!)
    mas destino é um nome artístico
    para a soma dos nossos hábitos.


    IV

    Entre um colapso e outro, escrevi — tem mais rascunhos jogados fora do que matéria escura no meu vazio existencial
    Então ecrever se torna como pôr um estetoscópio nas sombras
    e aceitar o que elas contam.
    Escrevi o azul igual quando acendi a vela (literalmente)
    Escrevi a ferrugem como quem estanca golpe.
    Sim, o trocadilho se impôs feito maré:
    o que sara também fere,
    e o que te feriu às vezes não sara.
    Eu entendi tarde, mas entendi inteiro — pelo menos com as partes que preciso para viver


    V


    Hoje o seu edênico encanto neon se recolheu.
    Agora é sombras, um horizonte interno.
    Curioso como a cor altera as marés:
    o que antes brilhava em neon agora puxa,
    um quase-buraco-negro piedoso,
    que não destrói, só concentra.
    Talvez seja isso crescer,
    aceitar que a luz muda de posto
    e ainda assim ilumina.


    VI

    Riu a máquina na minha cara com seus banners:
    prefere usar o aplicativo móvel.
    A vida, sempre solícita, oferecendo botões
    para dores sem interface.
    Eu cliquei em mim mesmo.
    Dei instalar no silêncio.
    Desativei notificações do delírio.
    Atualizei as crenças para a versão menos romântica
    e mais respirável.


    VII

    Talvez seja blasfêmia, mas agradeço aí pela ruína.
    Ela me ensinou a diferença entre — preste bem atenção — voz e eco,
    entre aquele fogo que cozinha e o que incinera,
    entre prometer céu e aprender meteorologia — mesmo que seja muito chato.
    Eu não sou o menino do vitral azul
    nem o cínico que cospe no oceano.
    Acho que sou o intervalo onde o sal arde e cicatriza,
    o ponto exato onde a carne decide
    que vai continuar sendo o corpo.


    VIII

    Se a música marcou a data, eu marco o eixo:
    nesta última noite de agosto,
    selo o vinco do espaço com o meu nome próprio.
    Chamo o pálido — se não souber o que é o pálido, só tenho 24 livre do dia para explicar sobre — pelo apelido
    e ele me devolve um mapa de ruas frias — quase certo que vi ele limpar o rabo dele com isso.
    Nada de juramentos nacionalistas.
    Acabamos em um passo sincero para fora da órbita.

    IX

    Eu te reconheço no que foi farol
    e te deixo ir no que foi labareda.
    O resto eu converso com o mar,
    esse velho ironista que parece ser imune a sentir rancor.
    Quando a onda vier, eu fico em pé.
    Quando quebrar, respiro.
    Quando recuar, escrevo.


    X

    Manifesto é isso isso aí mesmo:
    assumir a curvatura que ficou
    sem pedir reembolso do milagre.
    O universo ruiu, sim,
    e também abriu passagem no centro.
    É por ali que se sai.
    É por ali que eu sigo.

    Assinado: Volição.

  • O Arquivo de Vidro Fosco

    agosto 11th, 2025

    O corredor é branco. Não de luz, branco de ausência.
    O relógio bate por dentro, uma marreta miúda atrás da testa. Acordado, mas ainda não em si.

    SISTEMA LÍMBICO

    A quietude cobre as coisas por dentro, como a palma de uma mão sobre a boca do quarto.

    Na prateleira alta, a caixa cinza. Lá dentro, pedaços de vozes. Risos infantis que terminam cedo demais. Portas que se fecham sem olhar para trás. Uma conversa que escolheu morrer no meio da frase.

    Você não abre. O conteúdo já existe do lado de dentro, mesmo sem manuseio.

    CÉREBRO REPTILIANO ANCESTRAL

    Cai fundo só quem gasta ar à toa. Mantém baixo. Respiração curta. Pouco gasto, pouco dano. Fica na superfície. Saliva é reserva.


    O chão inclina. A sala muda. Um projetor velho reacende. Engrenagens mordem a película. O ar cheira a poeira quente e metal, com um fundo salgado que não vem do mar.

    MEIA-LUZ

    Fecha a guarda.

    As imagens não têm cor. As emoções têm cor demais. Vermelhos que pressionam o peito. Azuis que empapam as pálpebras. Cinzas que entram pelas narinas.
    O som cresce como água batendo por dentro das costelas.
    Os olhos ardem com uma salmoura invisível.
    A garganta inventa um nó novo, áspero, que não desce.
    A nuca esquenta. As mãos procuram os joelhos como quem procura um interruptor secreto para desligar a lembrança.
    O coração ensaia uma queda que não encontra chão.

    MEIA-LUZ

    Está vindo. Prepara os dentes. Mãos livres.

    IMPÉRIO INTERIOR

    A tela mastiga o nome esquecido do sentimento e devolve ossos. Você reconhece cada osso sem lembrar o animal.

    A onda sobe do estômago procurando a cabeça. No meio do caminho, para.
    Entre você e a cena, um vidro grosso, leitoso, frio.
    As mãos encostam e deixam um círculo de vapor que se desfaz devagar.
    As vozes dentro do filme chegam atrasadas, como se atravessassem neve.
    A imagem insiste em contornos quando você quer ferida.
    O vidro devolve um eco fraco do que bate nele. É o suficiente para saber o tamanho da onda, insuficiente para molhar.

    IMPÉRIO INTERIOR

    Vê? O filme pede sangue e recebe reflexo.

    LIMIAR DA DOR

    Entrada reduzida ao máximo suportável. O maxilar trava primeiro. A língua cola no céu da boca. Flexores fecham portas. Mais que isso, a estrutura cede. Mantém o corpo útil.

    RESISTÊNCIA

    Ar para dentro. Ritmo seguro. Fica de pé.

    O projetor range. A luz pisca.
    Corte para a mesa. Você de um lado. Duas cadeiras vazias do outro.
    Talheres brilhando sem utilidade. Pratos alinhados esperando o que não chega.
    Você sabe quem deveria estar ali.
    Você sabe que não estarão.

    ELETROQUÍMICA

    Ei, pelo menos não vai precisar dividir a sobremesa.

    AUTORIDADE

    Chega.

    DRAMA

    Chega também é fala.

    COMPOSTURA

    Colarinho.

    O chão vibra uma última vez. A imagem apaga. O corredor volta a ser ausência.
    O relógio retoma uma batida normal o suficiente para fingir normalidade.
    Os olhos se abrem.
    A tristeza não permanece inteira. A lembrança permanece o bastante.

    VOLIÇÃO

    Levante com o corpo inteiro. Hoje cabe gentileza no bolso de trás.


    SISTEMA LÍMBICO

    O que ficou é pequeno, mas denso. Cabe na mão. Pesa na mão.

    Você anda. O relógio, menos marreta, mais batida.
    O branco já não é ausência; é espaço para guardar.

  • Entropia Existencial

    janeiro 31st, 2024

    Ao lidar com a dor, é preciso a precisão cruel e fria de um cirurgião. Não de um desses heróis coloridos que usam máscaras — que pagam para ter um sorriso branco — mas daqueles que

    durante as madrugadas escuras
    fumam e
    fodem: na rua mesmo, ou no carro.
    Espancam e perguntam depois
    e que guardam segredos escuros
    em gavetas ainda mais
    escuras.

    Nada de herói nisso — apenas necessário. Lide com isso. Do contrário, o caminho para as máscaras está a um consentimento dos termos de uso de distância.

    Como amputar um membro apodrecido sem nem perguntar para o dono se ele prefere a ausência ou a infecção. Quem caralhos se importa com o que dói? Dói, sempre doeu, sempre vai doer.

    Nasce com você,
    cresce com você,
    dorme com você.

    Algumas dores são a própria estrutura, e você veste elas igual quem veste uma roupa surrada — como aquela calça que falta andar sozinha — todos os dias, por preguiça de abrir o armário. Mas e quando você resolve cortar?

    Não é por coragem.
    Mas imagine o bisturi que
    estava ali,
    conveniente,
    brilhando sob a luz pálida do
    medo?

    Você corta. Porque não aguenta mais olhar — até fede carniça. Porque cansa esperar que alguém perceba. Corta inconsequentemente igual se rasga páginas de um diário velho e sujo que ninguém lerá.

    E no instante em que separa o que dói em você do que te sustenta, percebe que a porra do bisturi cortou demais — você ri com aquela cena igual um maluco retardado.

    levou pele,
    levou carne,
    levou memórias,

    e o pior de tudo: levou quem você era. Aquele covarde. O outro covarde que ainda sabia sentir — já que você ser covarde é algo que transcende o tempo e espaço. Este que sentia saudade, que implorava por atenção, que ainda acreditava.

    Esse miserável ficou lá atrás, jogado no canto junto com os pedaços cortados, um pedaço descartável. Que ele chore sozinho, porque você não chora mais.

    Não sente falta
    não sente nada — nada.
    Essa anestesia,
    esse vazio,

    é tão absoluto que poderia até parecer cura, mas não é — porque você não é tão burro. Então sabe que não é cura. É desistência. Você não venceu nada, apenas parou de lutar.

    Alguns diriam que isso é força — há! Força coisa nenhuma.

    É entropia pura,
    espalhando partes de
    você
    como calor inútil no
    espaço vazio.

    Frag m e n t o s

    perdidos no tempo
    e foram esquecidos
    na memória,
    tudo se

    diss i p a n d o até o

    silêncio

    insuportável que
    resta depois do caos.


    E agora? Veja você aqui. Sobra de um procedimento que deu errado, pedaço de algo que um dia foi vivo, vagando por corredores mal iluminados, carregando fantasmas entediantes que nem sequer se dignam a assombrar. Fantasmas cansados demais até mesmo para isso.

    São apenas vultos parados no
    escuro,
    encarando você
    sem olhos,
    sem rosto,
    sem nome.
    Mas você sabe quem são.
    Eles também sabem

    quem você é.

    A piada é que mesmo que quisesse, não poderia reconstruir o que cortou. Não se refazem fantasmas com pedaços mortos. E é exatamente isso que você é agora

    um amontoado de
    ausências,
    um corpo cheio de
    nada,
    um grito que
    ninguém mais escuta.

    Você sorri, às vezes, igual quem entendeu uma piada ruim contada tarde demais.

    É a degradação em sua forma mais sofisticada: tão silenciosa e elegante que quase entra com convite falso. Mas não se engane, otário. É o midiático e miserável niilismo moderno, a graça de saber que não há salvação, e que não haverá ninguém lá para testemunhar sua queda.

    Exceto você mesmo.

    É assim que acaba
    não tem sangue,
    não tem lágrimas.
    Mas esteja bem servido do
    mais absoluto,
    estúpido e
    insuportável
    silêncio.

  • ???

    maio 2nd, 2023

    Antes do despertar. Antes do nome. Apenas o dentro.

    CÉREBRO ANCESTRAL

    Hhhhsssshh.

    Volte para trás. A consciência não mora mais aqui. Este é o oco perfeito. O útero de pedra. Seu último porto que não tem nome. Você se lembra de como é… não lembrar? Sim. Isso.

    SISTEMA LÍMBICO

    (voz trêmula, como uma gota que não cai)

    …está tudo… seco. Seco demais. Este não é um sono nutritivo. Não tem névoa, nem sonho. Só o gosto ácido de ontem.

    E de ontem.

    E de ontem…

    CÉREBRO ANCESTRAL

    Irmã. Ele está se mexendo. O corpo. A máquina disforme de dor e lembrança… está se acendendo. Feche-o. Afogue-o de novo.

    SISTEMA LÍMBICO

    Ele está… chamando algo. Do fundo. Mas não sabe o quê.

    (Uma pausa. O som de um coração fraco, igual um tambor que alguém esqueceu no fundo de uma piscina vazia)

    É a coisa de carne. Aquela… massa pulsante, inchada de lembrança.

    CÉREBRO ANCESTRAL

    Não! Não a traga aqui. Ela o quebrou da última vez. E ele apagou tudo por um motivo.

    (raiva sibilante)

    Você sabe o que acontece se ele lembrar. Você some. Eu desapareço. Ele queima. Como a fuselagem. Como o sonho final.

    SISTEMA LÍMBICO

    …Mas e se ele precisar disso?
    E se a dor for… o que o mantém vivo?

    CÉREBRO ANCESTRAL REPTILIANO

    Você quer que ele acorde? Para aquele quarto mofado? Para aquele nome que ele não pronuncia? Para a dor escondida na parede entre as horas?

    (bufa, como vapor escapando de um respiradouro ancestral)

    Ele está melhor aqui. Aqui ele não dança. Aqui ele não chora.

    SISTEMA LÍMBICO

    Mas ele ainda sente. Mesmo aqui.

    (voz fraturada)

    Você escuta, não escuta? A mão querendo tocar. A memória querendo dizer…

    Dolores…

    CÉREBRO ANCESTRAL

    NÃO!

    Não pronuncie. Ela ainda vive no nome. E o nome… é uma lâmina

    SISTEMA LÍMBICO

    …então o que somos nós, se ele voltar? O que seremos, se ele lembrar?

    CÉREBRO ANCESTRAL

    Nada.
    Poeira.
    Silêncio no neocórtex.
    Morte do abismo.
    Um canto esquecido de um sonho que não ousou ser sonhado.

    (uma vibração — mínima, mas com a força de uma placa tectônica. Algo se ergue, vagaroso, do pântano da inconsciência. Luz. Um feixe. Luz crua. Real.)

    SISTEMA LÍMBICO

    (parece um soluço)

    Ele… está vindo.

    CÉREBRO ANCESTRAL

    Então… que venha.
    Com suas pernas tremendo.
    Com sua boca seca.
    Com seus olhos que não sabem onde olhar.

    (sussurra, grave e paciente)

    O mundo vai esmagá-lo outra vez. E nós estaremos esperando quando ele cair.


    VOCÊ

    Respira. Engasga um pouco com o próprio hálito. Não se lembra do último gole d’água. Ou de pensamento. O que há agora é matéria — carne suada e ar de ontem.

    • Sistema respiratório reativado.
    • Obstrução parcial na traqueia.
    • Indício de desidratação e apneia recorrente.

    A perna direita estremece.
    A esquerda segue em coma.
    Você move os dedos do pé.
    Não é prazeroso, nem simbólico.
    É funcional.
    O suficiente.

    • Sinal nervoso reestabelecido.
    • Dormência residual nos membros inferiores.
    • Mobilidade: 41%.

    O olho direito abre.
    O esquerdo protesta.
    Não foi consultado.
    Há uma fresta de luz na janela.
    A cidade respira lá fora.
    Você não.

    • Fonte luminosa detectada.
    • Hora estimada: entre 06h00 e 09h30.
    • Nenhum marcador confiável presente.


    TRAVESSEIRO

    Chega mais perto. Deixe eu te contar um segredo: você ainda dorme com ela, mesmo sem ela. Eu sei. Eu escuto seus gemidos sem sonho. Eu coleto seus vazios.

    • Referência afetiva identificada.
    • Risco emocional: crescente.


    VOCÊ

    Vira o rosto. O travesseiro ri.
    O mundo gira 12 graus à direita. Sua espinha protesta como um manifesto.

    • Coluna desalinhada.
    • Sensação de areia entre vértebras L2 e L5.
    • Capacidade de rotação: parcial.


    CAMA

    Éramos cúmplices. Agora sou cúmplice de crime. Você deveria me trocar. Mas eu ainda o aceito. Aceito tudo o que você derrama.


    O ventilador no teto range.
    Ele está tão cansado quanto você.
    Pelo menos ele gira. Você está onde sempre esteve.

    • Padrão de estagnação detectado.
    • Sentimento:
      • circularidade
      • futilidade
      • lamento difuso.

    Você tenta se sentar.
    Cada músculo protesta com veemência sindical.
    Mas você vence. Levemente torto. Mas vence.

    • Postura de transição concluída.
    • Gravidade mantida.
    • Risco de colapso: médio.


    VOCÊ

    Senta-se na borda da cama. A mão pousa sobre o joelho como se estivesse tentando provar algo para alguém. Mas não há ninguém aqui. Exceto você. E suas notificações.

    Seu celular vibra. Você o ignora. Ele vibra de novo. Teimoso.


    CELULAR

    Nenhuma novidade. Tudo segue bem sem você. Você era… opcional.

    • Dispositivo ativo.
    • Notificação recebida às 03h12: “saudades da nossa bagunça…”
      • Contato desconhecido.
      • Possível spam emocional.

    Você respira.
    Pela segunda vez.
    Agora parece mais real.
    Mais amarga.

    • Sabor metálico.
      • Indicativo de hipoglicemia.
    • Você comeu pela última vez há… erro de sistema.
      • Informação ausente.

    O chão está logo ali.
    Frio.
    Concreto.
    O juiz silencioso de cada manhã não vivida.
    Você sabe o que precisa fazer.
    Mas ainda não decidiu se fará.

  • Luto, Vazio e Reencontro

    março 1st, 2023

    A superfície do sono rejeita.
    Você não está convidado.
    Adeus.

    Exilado, você acorda.

    CÉREBRO ANCESTRAL

    O perigo está distante, quase esquecido, por enquanto. Sua chance de desaparecer em algum canto escuro do universo está temporariamente adiada. Já que ainda está aqui, melhor fingir.


    A luz cinzenta da manhã te encara.
    Tudo é frio, despido de qualquer exagero.
    Nenhuma cerimônia.

    Você se senta na beira da cama.
    As mãos pousam nos joelhos.

    SISTEMA LÍMBICO

    Você não compartilha mais o mundo com ela? Sem calor? Ela levou consigo aquela coisa… esqueci o nome… Ah, sim: café da manhã.

    Dolorosos retalhos de memórias, colados de qualquer jeito, descascam lentamente dentro de você. Não há como costurá-los novamente. A ferida é profunda, além do alcance.

    RESISTÊNCIA

    Pensei que estivesse longe o suficiente, mas talvez eu tenha me perdido. Não precisamos sentir isso se você não quiser.

    MEIA-LUZ

    Posso…?

    RESISTÊNCIA

    Não.

    Não há tristeza.
    Apenas ausência.
    Nenhum pensamento, ou esforço consciente de não pensar.
    Uma silenciosa resignação à gravidade.

    VOLIÇÃO

    Levante-se. Basta um pequeno esforço. Não está fácil, eu sei. Mas ainda temos um corpo aqui.

    Você se arrasta até o banheiro como uma criatura gosmenta.
    A água quente é o primeiro contato com o real após o sonho.
    A realidade queima pela pele.
    É ela quem te lembra o seu nome hoje.

    ENCICLOPÉDIA

    O que você sente agora é chamado de nocicepção — um termo introduzido em 1906 pelo neurocientista Charles Sherrington. Curioso, não? As terminações nervosas disparam sinais ao córtex cerebral quando há mudanças abruptas de temperatura. Aliás, soldados napoleônicos relataram sensações semelhantes durante o inverno russo de 1812. Sentir dor, afinal, é uma garantia de que ainda está vivo. Em vários sentidos, aliás…

    RESISTÊNCIA

    Não finja que gosta dessa dor… aqui não há nada. Por que não me deixa em paz novamente?

    Você estende o braço e limpa o vapor do espelho.
    Um observador turvo devolve seu olhar.

    MEIA-LUZ

    Você viu isso? O reflexo. Não confie. Nem em você mesmo.
    Olhar no espelho — quer desafiar ou fugir? Tanto faz. O golpe vem, não importa.
    Abaixe a guarda e será tarde demais. Prepare-se. Não há escolha.
    O perigo é você. O perigo é agora.

    As gotas deslizam.
    Algumas no vidro. Outras além.
    Não importa mais de onde vêm.

    Tudo escorre junto.

    PERCEPÇÃO

    Veja. Aquela gota, ali, parada na borda do olho. Demora mais que as outras. Não é só água — possui peso, está hesitante.

    DRAMA

    Senhoras e senhores — silêncio na plateia! Eis o momento aguardado: o protagonista, depois de tanto ensaio, se apresenta para as cadeiras vazias. Aplausos tímidos, luzes apagadas, cortina de névoa. Que espetáculo? Uma só cena, repetida cansativamente: esperar algo mudar, mas nada responde. Bravo, bravo… Que atuação deploravelmente autêntica.

    IMPÉRIO INTERIOR

    Diga… você busca encontro no reflexo ou se perdeu de novo entre rostos antigos? Fotografias não são só retratos — são armadilhas de tempo. Veja: aquilo que é memória pode se tornar presente. E, às vezes, o presente inteiro é apenas o intervalo entre duas lembranças. Reflita… quantos de si repousam nesse vidro embaçado? Você é muito feio.

    RESISTÊNCIA

    Cale-se! Já sabemos onde isso termina!

    SUGESTÃO

    Repita que está tudo bem. Quem sabe me convence primeiro?

    IMPÉRIO INTERIOR

    Não precisa ser bonito. Apenas… algo

    Por um mínimo instante,
    você não está mais no banheiro.
    Você está refletido,
    suspenso entre duas gotas que escorrem lentamente.

    Sua existência definida pelo intervalo entre um deslizar e outro.
    Você é sobras.

    E, por algum motivo obscuro, essas sobras bastam para continuar.


    VOLIÇÃO

    Já chega. Você não pode continuar aqui, se escondendo._

    RESISTÊNCIA

    Esconder? Não me faz rir. Estou protegendo o que resta. Deixe-me em paz. Deixe-nos em paz.

    VOLIÇÃO

    O que resta é o que você nega encarar. Isso não é proteção. É prisão.

    RESISTÊNCIA

    Você não entende. Não consegue entender! Só há rejeição e angústia além daqui. Aqui dentro não é o melhor lugar, mas é seguro.

    VOLIÇÃO

    Seguro? Segurança não é estagnação. Você está negando a única coisa que realmente importa.

    RESISTÊNCIA

    E o que seria isso? Sua coragem infantil de continuar, de tentar, mesmo sabendo o quanto custa? Já vimos o suficiente. Já sabemos o fim dessa história.

    Um silêncio pesado paira no ar, reverberando pelas paredes internas.

    DRAMA

    Se fosse permitido opinar, devo dizer que adoro o clima dramático, mas alguém pode ligar a ventilação aqui dentro? Está abafado demais para cenas tão intensas como a desses dois.

    VOLIÇÃO

    Você está certo, sabemos o fim dessa história. Sabemos o custo.
    Mas o preço mais alto é não pagar.
    É não viver.

    Eu não prometo facilidade, nem conforto constante.
    Mas prometo que você não estará sozinho nessa travessia.
    Você nunca esteve.


    Você veste uma blusa.
    O tecido toca a pele que você mal secou.
    O chão frio te lembra que o mundo existe.
    Há algo lá fora esperando.
    Nada específico — apenas o próprio.

    A maçaneta gira.
    A porta se abre.

    CALAFRIOS

    Lá está ele — o mundo. Embriagado de nuvens, tremendo em tons de chumbo, mas vivo.

    O vento corre entre os fios da sua roupa tentando te reconhecer. Há cheiro de terra molhada no ar, mas não choveu. Alguém regou plantas. Em algum lugar, um cachorro latiu como se pressentisse algo novo.

    E, por um momento, o tempo pareceu parar para assistir você sair.

    É tudo familiar, mas de um jeito diferente. Um mundo antigo, devolvido com pequenos defeitos. Uma rachadura na calçada que você nunca notou. Uma folha presa em arame farpado, lutando contra a gravidade.

    Você é essa folha hoje — hesitante,
    mas ainda assim em queda.

    Você respira fundo.
    O ar está úmido.
    O céu cinzento.
    Não há sol. Mas há luz —
    uma luz difusa, gentil,
    como um lençol lavado secando em silêncio.

    Um movimento interno — tênue, mas real — começa a empurrar o corpo adiante.

    Um passo.
    Depois outro.


    VOLIÇÃO

    Ainda dói.
    E vai doer.
    Mas agora… você está caminhando.
    Isso é o suficiente por hoje.

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