Luto, Vazio e Reencontro

A superfície do sono rejeita.
Você não está convidado.
Adeus.

Exilado, você acorda.

O perigo está distante, quase esquecido, por enquanto. Sua chance de desaparecer em algum canto escuro do universo está temporariamente adiada. Já que ainda está aqui, melhor fingir.


A luz cinzenta da manhã te encara.
Tudo é frio, despido de qualquer exagero.
Nenhuma cerimônia.

Você se senta na beira da cama.
As mãos pousam nos joelhos.

Você não compartilha mais o mundo com ela? Sem calor? Ela levou consigo aquela coisa… esqueci o nome… Ah, sim: café da manhã.

Dolorosos retalhos de memórias, colados de qualquer jeito, descascam lentamente dentro de você. Não há como costurá-los novamente. A ferida é profunda, além do alcance.

Pensei que estivesse longe o suficiente, mas talvez eu tenha me perdido. Não precisamos sentir isso se você não quiser.

Posso…?

Não.

Não há tristeza.
Apenas ausência.
Nenhum pensamento, ou esforço consciente de não pensar.
Uma silenciosa resignação à gravidade.

Levante-se. Basta um pequeno esforço. Não está fácil, eu sei. Mas ainda temos um corpo aqui.

Você se arrasta até o banheiro como uma criatura gosmenta.
A água quente é o primeiro contato com o real após o sonho.
A realidade queima pela pele.
É ela quem te lembra o seu nome hoje.

O que você sente agora é chamado de nocicepção — um termo introduzido em 1906 pelo neurocientista Charles Sherrington. Curioso, não? As terminações nervosas disparam sinais ao córtex cerebral quando há mudanças abruptas de temperatura. Aliás, soldados napoleônicos relataram sensações semelhantes durante o inverno russo de 1812. Sentir dor, afinal, é uma garantia de que ainda está vivo. Em vários sentidos, aliás…

Não finja que gosta dessa dor… aqui não há nada. Por que não me deixa em paz novamente?

Você estende o braço e limpa o vapor do espelho.
Um observador turvo devolve seu olhar.

Você viu isso? O reflexo. Não confie. Nem em você mesmo.
Olhar no espelho — quer desafiar ou fugir? Tanto faz. O golpe vem, não importa.
Abaixe a guarda e será tarde demais. Prepare-se. Não há escolha.
O perigo é você. O perigo é agora.

As gotas deslizam.
Algumas no vidro. Outras além.
Não importa mais de onde vêm.

Tudo escorre junto.

Veja. Aquela gota, ali, parada na borda do olho. Demora mais que as outras. Não é só água — possui peso, está hesitante.

Senhoras e senhores — silêncio na plateia! Eis o momento aguardado: o protagonista, depois de tanto ensaio, se apresenta para as cadeiras vazias. Aplausos tímidos, luzes apagadas, cortina de névoa. Que espetáculo? Uma só cena, repetida cansativamente: esperar algo mudar, mas nada responde. Bravo, bravo… Que atuação deploravelmente autêntica.

Diga… você busca encontro no reflexo ou se perdeu de novo entre rostos antigos? Fotografias não são só retratos — são armadilhas de tempo. Veja: aquilo que é memória pode se tornar presente. E, às vezes, o presente inteiro é apenas o intervalo entre duas lembranças. Reflita… quantos de si repousam nesse vidro embaçado? Você é muito feio.

Cale-se! Já sabemos onde isso termina!

Repita que está tudo bem. Quem sabe me convence primeiro?

Não precisa ser bonito. Apenas… algo

Por um mínimo instante,
você não está mais no banheiro.
Você está refletido,
suspenso entre duas gotas que escorrem lentamente.

Sua existência definida pelo intervalo entre um deslizar e outro.
Você é sobras.

E, por algum motivo obscuro, essas sobras bastam para continuar.


Já chega. Você não pode continuar aqui, se escondendo._

Esconder? Não me faz rir. Estou protegendo o que resta. Deixe-me em paz. Deixe-nos em paz.

O que resta é o que você nega encarar. Isso não é proteção. É prisão.

Você não entende. Não consegue entender! Só há rejeição e angústia além daqui. Aqui dentro não é o melhor lugar, mas é seguro.

Seguro? Segurança não é estagnação. Você está negando a única coisa que realmente importa.

E o que seria isso? Sua coragem infantil de continuar, de tentar, mesmo sabendo o quanto custa? Já vimos o suficiente. Já sabemos o fim dessa história.

Um silêncio pesado paira no ar, reverberando pelas paredes internas.

Se fosse permitido opinar, devo dizer que adoro o clima dramático, mas alguém pode ligar a ventilação aqui dentro? Está abafado demais para cenas tão intensas como a desses dois.

Você está certo, sabemos o fim dessa história. Sabemos o custo.
Mas o preço mais alto é não pagar.
É não viver.

Eu não prometo facilidade, nem conforto constante.
Mas prometo que você não estará sozinho nessa travessia.
Você nunca esteve.


Você veste uma blusa.
O tecido toca a pele que você mal secou.
O chão frio te lembra que o mundo existe.
Há algo lá fora esperando.
Nada específico — apenas o próprio.

A maçaneta gira.
A porta se abre.

Lá está ele — o mundo. Embriagado de nuvens, tremendo em tons de chumbo, mas vivo.

O vento corre entre os fios da sua roupa tentando te reconhecer. Há cheiro de terra molhada no ar, mas não choveu. Alguém regou plantas. Em algum lugar, um cachorro latiu como se pressentisse algo novo.

E, por um momento, o tempo pareceu parar para assistir você sair.

É tudo familiar, mas de um jeito diferente. Um mundo antigo, devolvido com pequenos defeitos. Uma rachadura na calçada que você nunca notou. Uma folha presa em arame farpado, lutando contra a gravidade.

Você é essa folha hoje — hesitante,
mas ainda assim em queda.

Você respira fundo.
O ar está úmido.
O céu cinzento.
Não há sol. Mas há luz —
uma luz difusa, gentil,
como um lençol lavado secando em silêncio.

Um movimento interno — tênue, mas real — começa a empurrar o corpo adiante.

Um passo.
Depois outro.


Ainda dói.
E vai doer.
Mas agora… você está caminhando.
Isso é o suficiente por hoje.


Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *