Antes do despertar. Antes do nome. Apenas o dentro.
CÉREBRO ANCESTRAL
Hhhhsssshh.
Volte para trás. A consciência não mora mais aqui. Este é o oco perfeito. O útero de pedra. Seu último porto que não tem nome. Você se lembra de como é… não lembrar? Sim. Isso.
SISTEMA LÍMBICO
(voz trêmula, como uma gota que não cai)
…está tudo… seco. Seco demais. Este não é um sono nutritivo. Não tem névoa, nem sonho. Só o gosto ácido de ontem.
E de ontem.
E de ontem…
CÉREBRO ANCESTRAL
Irmã. Ele está se mexendo. O corpo. A máquina disforme de dor e lembrança… está se acendendo. Feche-o. Afogue-o de novo.
SISTEMA LÍMBICO
Ele está… chamando algo. Do fundo. Mas não sabe o quê.
(Uma pausa. O som de um coração fraco, igual um tambor que alguém esqueceu no fundo de uma piscina vazia)
É a coisa de carne. Aquela… massa pulsante, inchada de lembrança.
CÉREBRO ANCESTRAL
Não! Não a traga aqui. Ela o quebrou da última vez. E ele apagou tudo por um motivo.
(raiva sibilante)
Você sabe o que acontece se ele lembrar. Você some. Eu desapareço. Ele queima. Como a fuselagem. Como o sonho final.
SISTEMA LÍMBICO
…Mas e se ele precisar disso?
E se a dor for… o que o mantém vivo?
CÉREBRO ANCESTRAL REPTILIANO
Você quer que ele acorde? Para aquele quarto mofado? Para aquele nome que ele não pronuncia? Para a dor escondida na parede entre as horas?
(bufa, como vapor escapando de um respiradouro ancestral)
Ele está melhor aqui. Aqui ele não dança. Aqui ele não chora.
SISTEMA LÍMBICO
Mas ele ainda sente. Mesmo aqui.
(voz fraturada)
Você escuta, não escuta? A mão querendo tocar. A memória querendo dizer…
Dolores…
CÉREBRO ANCESTRAL
NÃO!
Não pronuncie. Ela ainda vive no nome. E o nome… é uma lâmina
SISTEMA LÍMBICO
…então o que somos nós, se ele voltar? O que seremos, se ele lembrar?
CÉREBRO ANCESTRAL
Nada.
Poeira.
Silêncio no neocórtex.
Morte do abismo.
Um canto esquecido de um sonho que não ousou ser sonhado.
(uma vibração — mínima, mas com a força de uma placa tectônica. Algo se ergue, vagaroso, do pântano da inconsciência. Luz. Um feixe. Luz crua. Real.)
SISTEMA LÍMBICO
(parece um soluço)
Ele… está vindo.
CÉREBRO ANCESTRAL
Então… que venha.
Com suas pernas tremendo.
Com sua boca seca.
Com seus olhos que não sabem onde olhar.
(sussurra, grave e paciente)
O mundo vai esmagá-lo outra vez. E nós estaremos esperando quando ele cair.
VOCÊ
Respira. Engasga um pouco com o próprio hálito. Não se lembra do último gole d’água. Ou de pensamento. O que há agora é matéria — carne suada e ar de ontem.
- Sistema respiratório reativado.
- Obstrução parcial na traqueia.
- Indício de desidratação e apneia recorrente.
A perna direita estremece.
A esquerda segue em coma.
Você move os dedos do pé.
Não é prazeroso, nem simbólico.
É funcional.
O suficiente.
- Sinal nervoso reestabelecido.
- Dormência residual nos membros inferiores.
- Mobilidade: 41%.
O olho direito abre.
O esquerdo protesta.
Não foi consultado.
Há uma fresta de luz na janela.
A cidade respira lá fora.
Você não.
- Fonte luminosa detectada.
- Hora estimada: entre 06h00 e 09h30.
- Nenhum marcador confiável presente.
TRAVESSEIRO
Chega mais perto. Deixe eu te contar um segredo: você ainda dorme com ela, mesmo sem ela. Eu sei. Eu escuto seus gemidos sem sonho. Eu coleto seus vazios.
- Referência afetiva identificada.
- Risco emocional: crescente.
VOCÊ
Vira o rosto. O travesseiro ri.
O mundo gira 12 graus à direita. Sua espinha protesta como um manifesto.
- Coluna desalinhada.
- Sensação de areia entre vértebras L2 e L5.
- Capacidade de rotação: parcial.
CAMA
Éramos cúmplices. Agora sou cúmplice de crime. Você deveria me trocar. Mas eu ainda o aceito. Aceito tudo o que você derrama.
O ventilador no teto range.
Ele está tão cansado quanto você.
Pelo menos ele gira. Você está onde sempre esteve.
- Padrão de estagnação detectado.
- Sentimento:
- circularidade
- futilidade
- lamento difuso.
Você tenta se sentar.
Cada músculo protesta com veemência sindical.
Mas você vence. Levemente torto. Mas vence.
- Postura de transição concluída.
- Gravidade mantida.
- Risco de colapso: médio.
VOCÊ
Senta-se na borda da cama. A mão pousa sobre o joelho como se estivesse tentando provar algo para alguém. Mas não há ninguém aqui. Exceto você. E suas notificações.
Seu celular vibra. Você o ignora. Ele vibra de novo. Teimoso.
CELULAR
Nenhuma novidade. Tudo segue bem sem você. Você era… opcional.
- Dispositivo ativo.
- Notificação recebida às 03h12: “saudades da nossa bagunça…”
- Contato desconhecido.
- Possível spam emocional.
Você respira.
Pela segunda vez.
Agora parece mais real.
Mais amarga.
- Sabor metálico.
- Indicativo de hipoglicemia.
- Você comeu pela última vez há… erro de sistema.
- Informação ausente.
O chão está logo ali.
Frio.
Concreto.
O juiz silencioso de cada manhã não vivida.
Você sabe o que precisa fazer.
Mas ainda não decidiu se fará.