O Arquivo de Vidro Fosco

O corredor é branco. Não de luz, branco de ausência.
O relógio bate por dentro, uma marreta miúda atrás da testa. Acordado, mas ainda não em si.

A quietude cobre as coisas por dentro, como a palma de uma mão sobre a boca do quarto.

Na prateleira alta, a caixa cinza. Lá dentro, pedaços de vozes. Risos infantis que terminam cedo demais. Portas que se fecham sem olhar para trás. Uma conversa que escolheu morrer no meio da frase.

Você não abre. O conteúdo já existe do lado de dentro, mesmo sem manuseio.

Cai fundo só quem gasta ar à toa. Mantém baixo. Respiração curta. Pouco gasto, pouco dano. Fica na superfície. Saliva é reserva.


O chão inclina. A sala muda. Um projetor velho reacende. Engrenagens mordem a película. O ar cheira a poeira quente e metal, com um fundo salgado que não vem do mar.

Fecha a guarda.

As imagens não têm cor. As emoções têm cor demais. Vermelhos que pressionam o peito. Azuis que empapam as pálpebras. Cinzas que entram pelas narinas.
O som cresce como água batendo por dentro das costelas.
Os olhos ardem com uma salmoura invisível.
A garganta inventa um nó novo, áspero, que não desce.
A nuca esquenta. As mãos procuram os joelhos como quem procura um interruptor secreto para desligar a lembrança.
O coração ensaia uma queda que não encontra chão.

Está vindo. Prepara os dentes. Mãos livres.

A tela mastiga o nome esquecido do sentimento e devolve ossos. Você reconhece cada osso sem lembrar o animal.

A onda sobe do estômago procurando a cabeça. No meio do caminho, para.
Entre você e a cena, um vidro grosso, leitoso, frio.
As mãos encostam e deixam um círculo de vapor que se desfaz devagar.
As vozes dentro do filme chegam atrasadas, como se atravessassem neve.
A imagem insiste em contornos quando você quer ferida.
O vidro devolve um eco fraco do que bate nele. É o suficiente para saber o tamanho da onda, insuficiente para molhar.

Vê? O filme pede sangue e recebe reflexo.

Entrada reduzida ao máximo suportável. O maxilar trava primeiro. A língua cola no céu da boca. Flexores fecham portas. Mais que isso, a estrutura cede. Mantém o corpo útil.

Ar para dentro. Ritmo seguro. Fica de pé.

O projetor range. A luz pisca.
Corte para a mesa. Você de um lado. Duas cadeiras vazias do outro.
Talheres brilhando sem utilidade. Pratos alinhados esperando o que não chega.
Você sabe quem deveria estar ali.
Você sabe que não estarão.

Ei, pelo menos não vai precisar dividir a sobremesa.

Chega.

Chega também é fala.

Colarinho.

O chão vibra uma última vez. A imagem apaga. O corredor volta a ser ausência.
O relógio retoma uma batida normal o suficiente para fingir normalidade.
Os olhos se abrem.
A tristeza não permanece inteira. A lembrança permanece o bastante.

Levante com o corpo inteiro. Hoje cabe gentileza no bolso de trás.


O que ficou é pequeno, mas denso. Cabe na mão. Pesa na mão.

Você anda. O relógio, menos marreta, mais batida.
O branco já não é ausência; é espaço para guardar.


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