Entropia Existencial

Ao lidar com a dor, é preciso a precisão cruel e fria de um cirurgião. Não de um desses heróis coloridos que usam máscaras — que pagam para ter um sorriso branco — mas daqueles que

durante as madrugadas escuras
fumam e
fodem: na rua mesmo, ou no carro.
Espancam e perguntam depois
e que guardam segredos escuros
em gavetas ainda mais
escuras.

Nada de herói nisso — apenas necessário. Lide com isso. Do contrário, o caminho para as máscaras está a um consentimento dos termos de uso de distância.

Como amputar um membro apodrecido sem nem perguntar para o dono se ele prefere a ausência ou a infecção. Quem caralhos se importa com o que dói? Dói, sempre doeu, sempre vai doer.

Nasce com você,
cresce com você,
dorme com você.

Algumas dores são a própria estrutura, e você veste elas igual quem veste uma roupa surrada — como aquela calça que falta andar sozinha — todos os dias, por preguiça de abrir o armário. Mas e quando você resolve cortar?

Não é por coragem.
Mas imagine o bisturi que
estava ali,
conveniente,
brilhando sob a luz pálida do
medo?

Você corta. Porque não aguenta mais olhar — até fede carniça. Porque cansa esperar que alguém perceba. Corta inconsequentemente igual se rasga páginas de um diário velho e sujo que ninguém lerá.

E no instante em que separa o que dói em você do que te sustenta, percebe que a porra do bisturi cortou demais — você ri com aquela cena igual um maluco retardado.

levou pele,
levou carne,
levou memórias,

e o pior de tudo: levou quem você era. Aquele covarde. O outro covarde que ainda sabia sentir — já que você ser covarde é algo que transcende o tempo e espaço. Este que sentia saudade, que implorava por atenção, que ainda acreditava.

Esse miserável ficou lá atrás, jogado no canto junto com os pedaços cortados, um pedaço descartável. Que ele chore sozinho, porque você não chora mais.

Não sente falta
não sente nada — nada.
Essa anestesia,
esse vazio,

é tão absoluto que poderia até parecer cura, mas não é — porque você não é tão burro. Então sabe que não é cura. É desistência. Você não venceu nada, apenas parou de lutar.

Alguns diriam que isso é força — há! Força coisa nenhuma.

É entropia pura,
espalhando partes de
você
como calor inútil no
espaço vazio.

Frag m e n t o s

perdidos no tempo
e foram esquecidos
na memória,
tudo se

diss i p a n d o até o

insuportável que
resta depois do caos.


E agora? Veja você aqui. Sobra de um procedimento que deu errado, pedaço de algo que um dia foi vivo, vagando por corredores mal iluminados, carregando fantasmas entediantes que nem sequer se dignam a assombrar. Fantasmas cansados demais até mesmo para isso.

São apenas vultos parados no
escuro,
encarando você
sem olhos,
sem rosto,
sem nome.
Mas você sabe quem são.
Eles também sabem

quem você é.

A piada é que mesmo que quisesse, não poderia reconstruir o que cortou. Não se refazem fantasmas com pedaços mortos. E é exatamente isso que você é agora

um amontoado de
ausências,
um corpo cheio de
nada,
um grito que
ninguém mais escuta.

Você sorri, às vezes, igual quem entendeu uma piada ruim contada tarde demais.

É a degradação em sua forma mais sofisticada: tão silenciosa e elegante que quase entra com convite falso. Mas não se engane, otário. É o midiático e miserável niilismo moderno, a graça de saber que não há salvação, e que não haverá ninguém lá para testemunhar sua queda.

Exceto você mesmo.

É assim que acaba
não tem sangue,
não tem lágrimas.
Mas esteja bem servido do
mais absoluto,
estúpido e
insuportável
silêncio.


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