Exílio na Penumbra

Havia o cheiro de metal morno, papel velho, café ralo e um tipo específico de pó que não pousa, mas flutua… invisível, feito uma ansiedade instalada no teto. Eu atravessava aqueles corredores como quem atravessa uma estação de trem desativada. A luz… aquela luz de fim de expediente, que faz questão de existir só o suficiente pra não deixar tudo escuro de vez.

Ela? Surgiu no canto da visão periférica. Um contorno. Um borrão de sorriso não muito fácil e olhos que aparentavam saber mais do que deveriam m. Me escutava… ou fingia bem. Durante aqueles dias em que eu ainda tropeçava nos cacos de outra história que tinha terminado mal. Tinha gosto de cinza na boca, e ela… ela parecia carregar fósforos nos bolsos.

Começou como brincadeira, e virou ritual. Um jogo de respostas ensaiadas pros olhos alheios. Quando perguntavam, dizíamos “sim”. Quando duvidaram, então nós fizemos esse papel de provocação. Dois farsantes aplaudindo a própria farsa. Eu gostava disso. Ela também, acho.

Mas a coisa… a coisa foi se infiltrando. No intervalo entre um suspiro e outro, nos minutos mortos entre uma obrigação e a próxima. Os olhares passaram a se demorar. Os toques viraram acidente com endereço certo.

Até aquela noite. Aquela porta que não era exatamente uma porta… mais uma saída de emergência mal sinalizada. Eu disse algo. Algo que hoje me escapa. E ela respondeu com aquele olhar de quem fecha os olhos antes de pular da pedra mais alta. O beijo foi rápido. Prematuro. Inesperado? E absolutamente necessário. A verdade é que, se eu não tivesse feito, teria me odiado. E se fiz, me odiei do mesmo jeito.

Arrastamos os corpos pra um canto onde a noite era mais obscura. Um pedaço de suposta privacidade que os postes fingiam não ver e depois esquecer. E ali… ali a cidade nos ignorou como deve ignorar todos os erros pequenos e sujos que acontecem quando ninguém está olhando. Mas nem todos. Não foi bonito. Não foi limpo. Foi o tipo de entrega que você tenta esquecer durante o banho, mas que sempre volta no cheiro da roupa, na palma da mão.

Depois… houve aquele outro dia. Mais tarde… muito mais tarde… mais obscuro… ou talvez tenha sido antes. O tempo fica torto quando você tenta encaixá-lo numa narrativa, mas ele está mole. Um beco. Um corredor histórico de tijolos com histórias que não nos pertenciam, mas que nos emprestaram a cena. Houve uma pressa desajeitada, uma fome insustentável… uma dança onde os trajes são m obstáculos. E a parede… e a parede, que era fria demais pra ser romântica, mas quente o suficiente pra não nos fazer parar.

Voltamos à vida então. Cotidiano. Igual quem volta de um funeral: em silêncio, evitando os olhos dos outros.

As guerra fria veio depois. Sempre vêm. Pequenas, rasteiras, como formigas atravessando a toalha da mesa. E eu… eu fui acumulando cálculos. Projetando o fim como se fosse um engenheiro de demolições. Porque sentir… sentir dá trabalho. E eu já tinha trabalho demais.

Então escolhi a saída mais fácil. Peguei uma noite qualquer, com a oportunidade de uma interrogação mal explicada que nem era tão séria, e joguei as palavras frias na mesa. Como moedas falsas. E ela… ela engoliu o orgulho, piscou mais vezes do que o necessário, e saiu andando como quem esqueceu o guarda-chuva numa tempestade que sabia que viria.

Depois disso, quem dera fosse pelo menos mensagens mornas. Não deve haver nem tentativa de resgate. Eu já tinha trancado as portas internas. Não por coragem… por covardia mesmo. A gente sempre disfarça a covardia com nomes mais bonitos.

Agora… agora eu passo por aqueles mesmos corredores, e é estranho como o tempo parece rir. As luzes continuam falhando nos mesmos lugares. O pó ainda dança. E ela… ela virou essa figura espectral, um tipo de lembrança que se esconde nos cantos da mente, feito um piano coberto por lençol velho.

Ela, com seus olhos que pareciam prever desastres, com a boca que guardava ironias como moedas de troco. Uma dessas personagens que aparecem no capítulo errado, mas deixam as páginas seguintes com cheiro de incêndio.

E eu… eu sigo. Fazendo de conta que esqueci. Calculando distâncias emocionais como quem faz conta de cabeça no supermercado. Mas à noite… quando tudo silencia… tem sempre aquele resquício que transcende camadas existenciais na mente e coração. Uma música que nunca começa de verdade… e que, por sorte ou maldição, também nunca termina.


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