(última noite de agosto, depois do universo)
I
Chamam de memória, eu chamo de gravidade.
Quando dois corpos se tocam, o espaço aprende.
Aconteceu conosco: passamos um pelo outro
e o tecido do mundo ficou amassado,
um vinco no tempo onde volto o dedo
e ainda sinto o morno do impacto.
II
Você chegou com aquela luz neon.
Mas não é o neon do catálogo, o azul-constelação
que treme na borda da íris e diz vem cá.
Eu chamei de paraíso e não me arrependo da palavra,
apesar do riso solitário e amargo que cultivo hoje.
O paraíso era um calor no osso,
era a caverna perdendo teto,
era a chama que invade.
Sim, forcei no Platão — não resisto a um toque de drama
sim, flertei com Nietzsche igual se eu tivesse encostado meu rosto
no corrimão do abismo para medir a altura.
E então tirei print existencial do abismo respondendo com educação:
seu olhar me olhou de volta.
III
Depois vieram os turnos de maré.
O campo de batalha feito de silêncio,
o uniforme, uma provocativa lembranças de paciência.
Eu, encastelado na pseudológica;
você, farol insistente na neblina.
E aí os mapas não batiam,
a entropia fez o serviço:
o universo ruiu na cadência suficientemente correta,
uma escada que desce sem corrimão — toma cuidado!
Eu quis chamar isso de destino, eu chamei (surpresa!)
mas destino é um nome artístico
para a soma dos nossos hábitos.
IV
Entre um colapso e outro, escrevi — tem mais rascunhos jogados fora do que matéria escura no meu vazio existencial
Então ecrever se torna como pôr um estetoscópio nas sombras
e aceitar o que elas contam.
Escrevi o azul igual quando acendi a vela (literalmente)
Escrevi a ferrugem como quem estanca golpe.
Sim, o trocadilho se impôs feito maré:
o que sara também fere,
e o que te feriu às vezes não sara.
Eu entendi tarde, mas entendi inteiro — pelo menos com as partes que preciso para viver
V
Hoje o seu edênico encanto neon se recolheu.
Agora é sombras, um horizonte interno.
Curioso como a cor altera as marés:
o que antes brilhava em neon agora puxa,
um quase-buraco-negro piedoso,
que não destrói, só concentra.
Talvez seja isso crescer,
aceitar que a luz muda de posto
e ainda assim ilumina.
VI
Riu a máquina na minha cara com seus banners:
prefere usar o aplicativo móvel.
A vida, sempre solícita, oferecendo botões
para dores sem interface.
Eu cliquei em mim mesmo.
Dei instalar no silêncio.
Desativei notificações do delírio.
Atualizei as crenças para a versão menos romântica
e mais respirável.
VII
Talvez seja blasfêmia, mas agradeço aí pela ruína.
Ela me ensinou a diferença entre — preste bem atenção — voz e eco,
entre aquele fogo que cozinha e o que incinera,
entre prometer céu e aprender meteorologia — mesmo que seja muito chato.
Eu não sou o menino do vitral azul
nem o cínico que cospe no oceano.
Acho que sou o intervalo onde o sal arde e cicatriza,
o ponto exato onde a carne decide
que vai continuar sendo o corpo.
VIII
Se a música marcou a data, eu marco o eixo:
nesta última noite de agosto,
selo o vinco do espaço com o meu nome próprio.
Chamo o pálido — se não souber o que é o pálido, só tenho 24 livre do dia para explicar sobre — pelo apelido
e ele me devolve um mapa de ruas frias — quase certo que vi ele limpar o rabo dele com isso.
Nada de juramentos nacionalistas.
Acabamos em um passo sincero para fora da órbita.
IX
Eu te reconheço no que foi farol
e te deixo ir no que foi labareda.
O resto eu converso com o mar,
esse velho ironista que parece ser imune a sentir rancor.
Quando a onda vier, eu fico em pé.
Quando quebrar, respiro.
Quando recuar, escrevo.
X
Manifesto é isso isso aí mesmo:
assumir a curvatura que ficou
sem pedir reembolso do milagre.
O universo ruiu, sim,
e também abriu passagem no centro.
É por ali que se sai.
É por ali que eu sigo.
Assinado: Volição.