O Homem Mutilado

O quarto afunda antes do chão. 

papelão molhado, a tinta escorre 

um rio sem margem onde os passos não chegam. 

o chão recua, feito promessa quebrada. 

eu não entendo o que segura o teto. 

a água sobe lenta, sem pressa de afogar, 

apenas cobrir o que restou do sentido. 

Bolhas mudas. O ar, uma espessura

que não empurra, só contorna.

Vácuo. Mãos se lavam no que não existe,

um gesto antigo, inútil. Limpo de nada.

o que se espera quando o eco se cala?

Ele é feito de retalhos, costuras recentes 

que sangram. Fios tensos, memória viva 

da lâmina que separou a carne, o destino. 

O fio entra chiando. A pele recua tarde. 

O osso estala duas vezes. 

Teseu sem labirinto, ele próprio o monstro 

que aguarda na esquina do próprio corpo, 

o mapa do que já foi, agora um emaranhado. 

Um nó. Só. 

Um ponto de pó. Que se assenta. 

O rio de antimatéria empurra sem tocar. 

Uma força que anula, sem toque físico, 

sem cheiro, sem aviso. Só o vácuo gelado. 

Frio seco que queima. Vento nenhum eriçando pelos. 

Eu vejo os pelos imóveis, a pele arrepiada 

por um nada gelado. Uma porra de vazio que dói. 

Uma pressão que dobra os joelhos. 

A areia da praia, um castelo erguido na pressa. 

Balde e pá, ferramentas de criança 

para um adulto em escombros de silêncio. 

Marca de dedo na muralha. Um brasão torto. 

A pá encostada. E o mar? 

Não há mar. Só o barulho da ausência, 

o silvo branco da espuma que não vem. 

Mofo na alma, um cheiro que não sai, 

impregnando cada fibra, cada ideia. 

Anedonia, o apagão educado. 

Sem luz, sem grito, sem raiva sequer. 

Só o silêncio que se adapta, que não faz ondas, 

que não denuncia o que apodrece por dentro. 

Um muro sem cor. Uma tela branca demais. 

Mas a palavra. Ah, a palavra é a tábua. 

Mesmo que podre, mesmo que fina, 

ela flutua. O último respiro contra o afogamento. 

Eu escrevo até que o vidro responda com bafo. 

Um sopro contra a frieza. Um sinal de que, merda, 

ainda há algo aqui. Um resquício teimoso. 

Um rasgo. Um laço. Tentando laçar o ar. 

Mar, amar, amargar. Tudo vira pó. 

Mas o escrever… é um músculo que insiste. 

O ritmo serrilhado da vida. 

Cortes bruscos, pausas súbitas. 

A respiração engasgada, um arranhar na garganta. 

O pulso falha, depois acelera 

sem razão. Sem lógica. 

Só o corpo, obedecendo a algo 

maior que ele, maior que eu. 

Que ele. 

A palavra não salva como barco, mas sustenta como boia. 

Eu respiro, devagar, devagarinho, vivo. 


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